terça-feira, 5 de agosto de 2008

TRT-GO; CONCURSO PÚBLICO - Outubro/ 2003

O abridor de latas!

Pela primeira vez, no Brasil, um conto escrito inteiramente em câmera lenta.
Quando esta história se inicia, já se passaram quinhentos anos, tal a lentidão em que ela é narrada. Estão sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com 800 (oitocentos) anos cada uma, uma tartaruga velha com 1200 (um mil e duzentos) anos, e uma tartaruga bem pequenininha com 85 (oitenta e cinco) anos. As cinco tartarugas estão sentadas, dizia
eu. E dizia-o muito bem pois elas estão sentadas mesmo. Vinte e oito anos depois do começo desta história a tartaruga mais velha abriu a boca e disse:
- Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?
Formidável! - disse a tartaruguinha mais nova 12 (doze) anos depois - vamos fazer um piquenique?
Vinte e cinco anos depois as tartarugas se decidiram a realizar o piquenique. Quarenta anos depois, tendo comprado algumas dezenas de latas, partiram. Oitenta anos depois chegaram a um lugar mais ou menos aconselhável para um piquenique.
Ah - disse a tartaruguinha, 8 (oito) anos depois, excelente local este!
Sete anos depois todas as tartarugas tinham concordado. Quinze anos se passaram e, rapidamente, elas tinham arrumado tudo para o convescote. Mas, súbito, três anos depois, elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas.
Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à conclusão de que a tartaruga menor devia ir buscar o abridor de latas.
- Está bem - concordou a tartaruguinha três anos depois, mas só vou se vocês prometerem que não tocam em nada
enquanto eu não voltar.
Dois anos depois as tartarugas concordaram imediatamente que não tocariam em nada, nem no pão, nem nos doces. E a tartaruguinha partiu.
Passaram-se cinqüenta anos e a tartaruga não apareceu. As outras continuavam esperando. Mais dezessete anos e nada. Mais oito anos e nada ainda.
- Ela está demorando muito. Vamos comer coisa enquanto ela não vem?
- As outras não concordaram, dois anos depois. E esperaram mais dezessete anos. Aí outra tartaruga disse:
- Já estou com muita fome. Vamos comer só um pedacinho de doce que ela nem notará.
As outras tartarugas hesitaram um pouco mas, quinze anos depois, acharam que deveriam esperar pela outra. E se passou mais um século nessa espera. Afinal a tartaruga mais velha não pôde mesmo e disse:
- Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos enquanto ela não vem.
Como um raio as tartarugas caíram sobre os doces seis meses depois. E justamente quando iam morder o doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a tartaruga mais jovem apareceu:
- Ah - murmurou ela - eu sabia, que vocês não cumpririam o prometido e por isso fiquei escondida atrás da árvore.
Agora não vou mais buscar o abridor, pronto!
FIM (trinta anos depois).
***

(FERNANDES, Millôr. In: Trinta anos de mim mesmo, Rio de Janeiro: Record, 1976.)

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